Ato I, Cena I - Véspera do Governo Virado.
Estamos todos em um bar qualquer no centro do país do Baurets: musica alta na jukebox, cerveja, churrasquinho e anarquistas que, por conta da recente perseguição sofrida por um dos nossos companheiros, chamarei apenas pelas iniciais.
Discutíamos as ações do dia seguinte: quem ia, quem ficava, quem faria a campana, a notícia ou o socorro se precisasse.
- Sabem o que vai acontecer amanha? Vamos passar na tv.
Ato I, Cena II - Caminho de Ida.
F, o nosso piloto oficial de fuga movido à álcool nos levou um a um a seus destinos, eu e MF fomos pra onde a Lua nascia dos escombros.
- Você tá muito locão parça, corre menos.
- Eu piloto bem. Nossa nem te contei que vou ser pai né?
- Jura?
- Meu filho já tá pra nascer.
- Corre menos.
Ato II, Cena I - A Morada da Lua
Nossa casa era a primeira, sem portas e janelas mas uma das únicas de alvenaria. Era chamada de "portaria" por que todos que entravam passavam por ela, a gente sempre sabia onde e como tava todo mundo, se aparecia polícia a gente também via primeiro. MF me esperava na primeira viela.
- Vou te mostrar a comunidade
- Não tá muito tarde?
- Não. Só cuidado com os cachorros. Quando eu e o MV chegamos tivemos que correr pelo mato, maior carreirão.
E foi me mostrando onde era a casa das pessoas que ajudavam e abrigavam a nossa organização, onde passaríamos a conviver, me mostrou a vala que cavaram pra evitar reintegração de posse, entrada de carros fora da portaria, invasão da prefeitura ou do choque. Me mostrou o primeiro barraco a ser sede da Frente Anarquista Libertária ali no meio, ainda com a bandeira que eu havia pintado numa ação passada hasteada.
Vi de longe um cão de grande porte saindo do escuro que depois nos acompanhou.
Ato II, Cena II - A Primeira Noite de Lua.
Era difícil dormir com a ansiedade do dia seguinte e além disso fazia muito, muito frio mesmo. Os cobertores estavam quase todos molhados pela chuva que havia alagado o barraco uns dias antes.
- Vocês também nem pra por pra secar
- Esquecemos (risos)
- Homens...
- É melhor dormimos em um colchão só, ai a gente joga as cobertas secas encima uma da outra.
- Ok.
...
-Tá com sono?
- Não.
Ato III, Cena I - O Grande Dia.
Um vizinho nos acordou trazendo pão e uma garrafa de café, dei um bom dia pros companheiros e fomos pra casa de um outro vizinho onde tinha água pra usar o banheiro e escovar os dentes. Arrumamos as malas, o que dava pra arrumar no barraco e fomos fazer o almoço na casa de outra moradora.
A mãe do MV apareceu por lá temendo que ele estivesse no assentamento e que fosse até Brasília. Tumultuou tanto que achamos que iam nos expulsar e de fato quase aconteceu. "Irresponsabilidade", dizia a coordenação.
- Menor de idade aqui não fica mais.
- Não é minha mãe e o filho dela nem tá aqui e nem é menor.
- Não vai viajar sem autorização. Ela tem lugar no ônibus, você não.
Eu não queria viajar sem a minha organização de base. Quem cobriria minhas costas? Quem ficaria ali comigo o tempo todo necessário? Quem lutaria pela minha volta caso eu fosse pega?
Ato III, Cena II - A Viagem.
Começamos a concentração debaixo de uma tenda, o helicóptero da pm sobrevoava a comunidade e o ônibus estava atrasado já algumas horas. O medo que eu sentia por estar sozinha em meio a uma organização que não era a minha me preparando pra uma ação com aquele peso aos poucos foi passando pois fui muito bem acolhida (e ouso dizer que até protegida), vi o tempo todo anjos ao meu lado, começando pelo que chamávamos de "Mais velho": um senhor de barba e cabelos já bem brancos que posteriormente seria meu melhor companheiro de buteco dentro da Morada da Lua, veio me contando no caminho que andava todos os dias muitos quilômetros pra cuidar da esposa que estava em estado terminal no hospital, me lembrou meu avô, que havia falecido dois meses antes por conta de não conseguir lidar psicologicamente com o estado terminal da minha avó.
O segundo anjo era o "Tio Capoeira", um mestre de roda que vivia sem endereço esperando a volta do filho que estava preso, costumava me acolher no barraco dele quando chovia muito, já que MF e MV não obtiveram muito sucesso na construção do nosso telhado.
O terceiro anjo era o Jé, e desse eu nem tenho muito o que dizer não...
Um litro de conhaque foi pouco em doze horas pra nós quatro (risos).
Ato IIII, Cena I - A chegada.
Era um tal de "tira foto", "levanta a bandeira", "cobre a cara", "FORA TEMER!". Tinha muita campanha política mas quanto mais a gente andava mais preto e menos vermelho tinha no mar de gente.
O Mais Velho entrou no banheiro da galeria e foi acoado por policiais. Perto do front já dava pra sentir o gás lacrimogênio. Quando começou a pancadaria eu corri pra achar algo com o que eu pudesse me defender, olhei pro lado e tava o Tio Capoeira segurando uma ripa de madeira, apontou pra um mendigo que dormia entre um monte de papelão, quase não dava pra ve-lo, e disse: "Olha ali uma ocupação". Diz o Jé que viu o MV passar correndo do nosso lado (ele havia ido em outro ônibus).
Ato IIII, Cena II - As Circunstancias.
Voltamos pro ônibus na intenção de fazer comida (sim, a gente tava preparado até pra passar dias lá) e uma parte da galera de quem eu ainda não fiz e nem pretendia fazer referência pois são partidários e não curtiram nem um pouco a minha presença entre eles chegou barrando.
Nós voltamos pro centrão da baderna onde o bicho ainda tava pegando e a bala de borracha tava comendo solta e acreditem vocês ou não, tinha gente se aproveitando financeiramente disso como se fosse entretenimento. Foi ai que entraram mais dois anjos na história: Abacate e Peralta, que, além de saquearem os empreendimentos capitalistas pra gente poder almoçar também me acalmaram na crise de pânico que eu tive atravessando a avenida enquanto passava a Força Nacional.
Ato IIII, Cena III - O Governo Virado.
"- Não renunciarei!"
O presidente gritava pros jornalistas enquanto ateavam fogo nos seus ministérios. Sua sala foi invadida, os vidros do planalto foram quebrados, reza a lenda que antes de tudo isso acontecer haviam fileiras de máscaras brancas sustentadas por hastes de madeira por todo o gramado.
Foi épico, foi lindo, podia muito bem se repetir no governo atual. Não vou contar sobre a viagem de volta por que não vem ao caso mas também foi épica.
*Dedico com todo meu amor, respeito e minhas forças esse texto, ainda que meio desconexo por que já se passou um tempo dos fatos e minha memória não é lá das melhores, ao meu companheiro e aliado mais forte, MF, que por motivos banais não pode me acompanhar naquele dia mas aguardou a minha volta.