quarta-feira, 3 de junho de 2015

Equilíbrio


"Concordei que eu tinha uma tendência para me entregar ao medo e à perplexidade.

— Digamos que uma norma básica para você seja que, quando você me vem ver, vem preparado para morrer. Se você vier pronto para morrer, não deve haver tropeços, nem surpresas desagradáveis, nem atos desnecessários. Tudo deve entrar suavemente nos eixos, porque você nada espera.

— É fácil dizer isso, Dom Juan. Mas eu é que estou na berlinda. Eu é que tenho de viver com tudo isso.

— Não é que você tenha de viver com tudo isso. Você é tudo isso. Você não está apenas tolerando isso, por enquanto. Sua resolução de ingressar nesse mundo perverso da feitiçaria já devia ter extinguido todas essas remanescentes sensações de confusão, e deveria dar-lhe a coragem de reivindicar tudo isso como seu mundo.

Eu me sentia constrangido e triste. Os atos de Dom Juan, por mais preparado que eu me encontrasse, exigiam de mim tais esforços, que cada vez que eu entrava em contato com ele não tinha outro recurso senão agir e sentir-me como uma pessoa meio racional e rabugenta. Tive um acesso de raiva e não quis mais escrever. Naquele momento, eu queria rasgar minhas anotações e jogar tudo na lata do lixo. E é o que teria feito, se não fosse Dom Juan, que se riu e me segurou o braço, controlando-me.

Num tom zombeteiro ele disse que o meu tonal já ia se iludir de novo. Recomendou que eu fosse ao chafariz para borrifar água em meu pescoço e minhas orelhas.

A água me acalmou. Ficamos calados um longo momento.

— Escreva, escreva — insistiu Dom Juan, num tom amigo. — Digamos que seu caderno de notas é a única feitiçaria que você tem. Rasgá-lo é mais um meio de se expor à sua sorte. Será mais uma de suas manhas, uma manha escandalosa, no máximo, e não uma modificação. Um guerreiro nunca deixa a ilha do tonal. Ele a utiliza.

Ele apontou em volta de mim com um movimento rápido da mão e depois tocou no meu bloco.

— Este é o seu mundo. Não pode renunciar a ele. Não adianta ficar zangado e desapontado consigo mesmo. Isso só prova que nosso tonal está empenhado numa luta interna; uma luta dentro do tonal da gente é uma das contendas mais inúteis que posso imaginar. A vida apertada de um guerreiro destina-se a terminar essa luta. Desde o princípio eu lhe ensinei conto evitar o desgaste. Agora, não há mais uma guerra dentro de você, não como antes, porque o caminho do guerreiro é a harmonia, a harmonia entre os atos e as decisões, primeiro, e depois a harmonia entre o tonal e o nagual. Durante todo o tempo em que o conheço, falei tanto a seu tonal como a seu nagual. É assim que a instrução deve ser conduzida. No princípio, a gente tem de falar com o tonal. É o tonal que tem de largar o controle. Mas isso deve ser feito de boa vontade. Por exemplo, seu tonal largou certos controles sem muita luta porque se tornou claro para ele que, se ele permanecesse como era, a totalidade de você a esta hora estaria morta. Em outras palavras, o tonal é obrigado a ceder coisas desnecessárias, como a auto-importância e entregar-se, que só o levam ao tédio. O problema todo é que o tonal se agarra a tais coisas, quando devia ficar feliz por se ver livre de besteiras. O trabalho então é convencer o tonal a tornar-se fluido e livre. É disso que o feiticeiro precisa acima de tudo, um tonal forte e livre. Quanto mais forte ele fica, menos se agarra a seus feitos, e mais fácil se torna reduzi-lo. Portanto, o que aconteceu hoje de manhã foi que vi a oportunidade de reduzir seu tonal. Por um momento, você ficou distraído, sem pensar, e agarrei esse momento para empurrá-lo. O tonal se encolhe, em dados momentos, especialmente quando fica constrangido. De fato, uma das características do tonal é a timidez. Sua timidez não é realmente um problema. Mas há certos casos em que o tonal é tomado de surpresa, e sua timidez inevitavelmente o faz encolher-se. Hoje de manhã, colhi meu centímetro cúbico de sorte. Reparei na porta aberta daquele escritório e empurrei-o. Um empurrão, portanto, é a técnica para reduzir o tonal. Deve-se empurrar no momento exato; para isso, claro, é preciso saber ver. Depois que o homem foi empurrado e o seu tonal encolhido, o seu nagual, se já estiver em ação, por menor que seja o movimento, tomará conta e conseguirá feitos extraordinários. Seu nagual tomou conta hoje e você acabou num mercado.

(...)

— Coisas assim acontecem — explicou. — O nagual, depois que aprende a emergir, pode causar grandes danos ao tonal, aparecendo sem qualquer controle. Mas seu caso é especial. Você é dado a entregar-se de modo tão exagerado que podia morrer e nem se importar, ou pior ainda, nem perceber que estava morrendo.

Eu lhe disse que minha reação começara quando ele perguntou se eu sentia o que meu nagual tinha feito. Eu achava que sabia exatamente aquilo a que ele se referia, mas quando tentei descrever o que era, vi que não conseguia pensar claramente. Tinha uma sensação de tonteira, quase de indiferença, como se eu realmente não me importasse com coisa alguma. Aí essa sensação passou a ser a de uma concentração hipnótica. Era como se eu todo estivesse sendo lentamente sugado. O que atraía e me deixava atento era a sensação nítida de que um segredo portentoso me seria revelado e que eu não queria que nada atrapalhasse essa revelação.

— O que lhe ia ser revelado era a sua morte — disse Dom Juan. — Aí está o perigo de a pessoa se entregar. Especialmente para você, pois você é naturalmente exagerado. Seu tonal é tão dado a entregar-se que ameaça sua totalidade. Isso é uma maneira terrível de se ser.

— O que posso fazer?

— Seu tonal tem de se convencer por motivos, seu nagual, por ações, até um apoiar o outro. Conforme já lhe disse, o tonal governa, e, no entanto, é muito vulnerável. O nagual, ao contrário, nunca, ou quase nunca, se manifesta, mas, quando o faz, apavora o tonal. Hoje, seu tonal assustou-se e começou a encolher-se sozinho, e aí seu nagual começou a dominar. Tive de pedir emprestado um balde de um dos fotógrafos do parque para poder açoitar seu nagual como um cão desobediente e fazê-lo voltar ao lugar. O tonal deve ser protegido a todo custo. É preciso tirar-lhe a coroa, mas ele tem de continuar como o administrador protegido. Qualquer ameaça ao tonal sempre acaba em sua morte. E se o tonal morrer, o homem todo também morre. Em virtude de sua fraqueza inerente o tonal é facilmente destruído e assim uma das artes que equilibram o guerreiro é fazer o nagual aparecer para sustentar o tonal. Digo que é uma arte porque os feiticeiros sabem que só reforçando o tonal é que o nagual pode aparecer. Entende o que eu digo? Esse reforço chama-se poder pessoal." (Carlos Castaneda - Porta para o Infinito)