"— Depende de você — respondeu ele, — Já lhe dei todas as informações necessárias. Agora, cabe a você a responsabilidade de conseguir suficiente poder pessoal para fazer pender a balança.
— Você está falando por metáforas — disse eu. — Diga sinceramente. Diga exatamente o que devo fazer. Se já me disse, digamos que já esqueci.
Dom Juan riu-se e deitou-se, pondo os braços por baixo da cabeça.
— Você sabe exatamente do que precisa — disse ele. Expliquei-lhe que às vezes achava que sabia, mas que a maior parte do tempo não tinha confiança em mim.
— Acho que você está misturando as coisas — prosseguiu ele, — A autoconfiança do guerreiro não é a mesma que a do homem comum. Este busca a certeza aos olhos do espectador e chama a isso autoconfiança. O guerreiro busca a impecabilidade a seus próprios olhos e chama a isso humildade. O homem comum está agarrado a seus semelhantes, enquanto o guerreiro só se agarra a si mesmo. Talvez você esteja perseguindo uma quimera. Busca a autoconfiança do homem comum, enquanto devia estar atrás da humildade do guerreiro. A diferença, entre os dois é notável. A confiança em si significa saber algo com certeza; a humildade significa ser impecável em suas ações e sentimentos.
— Estive tentando viver de acordo com suas sugestões — disse eu. — Posso não ser o melhor, mas sou o melhor de mim mesmo. Isso é ser impecável?
— Não. Tem de fazer mais que isso. Você tem de se esforçar ao máximo, o tempo todo.
— Mas isso seria loucura, Dom Juan. Ninguém o consegue.
— Há muita coisa que você faz agora que lhe teria parecido loucura há 10 anos. Essas coisas em si não mudaram, mas sua concepção de si mesmo mudou; o que antes era impossível é hoje inteiramente possível, e talvez que o seu sucesso total em se modificar seja apenas uma questão de tempo. Nesse assunto, o único caminho aberto a um guerreiro é agir persistentemente e sem reservas. Você já sabe o suficiente sobre o procedimento do guerreiro para agir de acordo, mas seus velhos hábitos e rotinas o atrapalham.
...
Eu lhe disse que não me sentia digno e que talvez fosse melhor voltar para casa e voltar ali quando me sentisse mais forte.
— Você está dizendo besteira — retrucou ele. — Um guerreiro aceita seu destino, seja qual for, e o aceita na mais total humildade. Aceita com, humildade aquilo que ele é, não como fonte de pesar, mas como um desafio vivo. É preciso tempo para cada um de nós compreender esse ponto e vivê-lo plenamente. Eu, por exemplo, detestava a simples menção da palavra humildade. Sou índio e nós índios sempre fomos humildes e nunca fizemos outra coisa «não curvar a cabeça. Pensei que a humildade não fazia parte da vida de um guerreiro. Mas estava enganado! Hoje sei que a humildade de um guerreiro não é a humildade de um mendigo. O guerreiro não curva a cabeça para ninguém, mas ao mesmo tempo não permite que pessoa alguma curve a cabeça para ele. O mendigo, ao contrario, prostra-se de joelhos por qualquer coisa e lambe as botas de quem quer que ele considere seu superior; mas, ao mesmo tempo, exige que alguém que lhe seja inferior lhe lamba as botas. Foi por isso que lhe disse antes que eu não sabia como se sentiam os mestres. Só conheço a humildade do guerreiro, e isso nunca permitirá que eu seja mestre de alguém.
...
— Você gosta da humildade de um mendigo — disse ele baixinho. — Curva a cabeça diante da razão.
— Eu sempre acho que estou sendo ludibriado — disse eu. — É esse o meu problema.
— Tem razão. Está sendo ludibriado — retrucou ele, com um sorriso de desarmar. — Este não pode ser o seu problema. A verdadeira essência do negócio é que você acha que lhe estou mentindo propositadamente, não é?
— Sim. Creio que há em mim alguma coisa que não me deixa crer que o que está acontecendo é real.
— Mais uma vez você tem razão. Nada do que está acontecendo é real.
— O que quer dizer com isso, Dom Juan?
— As coisas só são reais depois que resolvemos concordar com a sua realidade. O que aconteceu esta noite, por exemplo, não pode ser real para você, pois ninguém poderia concordar com você a respeito.
— Quer dizer que você não viu o que aconteceu?
— Claro que vi. Mas eu não conto. Sou eu que lhe estou mentindo, lembra-se?
Dom Juan riu-se até tossir e se engasgar. Seu riso era amigo, embora ele estivesse caçoando de mim.
— Não dê muita atenção a todas as minhas tolices — disse ele, tranquilizando-me. — Só estou procurando acalmá-lo e sei que você só se sente à vontade quando está todo confuso. A expressão dele era propositadamente cômica e nós dois nos rimos. Eu lhe disse que o que ele acabava de me dizer me assustava mais do que tudo.
— Tem medo de mim? — perguntou ele.
— De você não, mas sim do que você representa.
— Represento a liberdade do guerreiro. Tem medo disso?
— Não. Mas tenho medo do assombro de seu conhecimento. Não há alívio para mim, nem um abrigo para onde fugir.
— Você está novamente confundindo as coisas. Alívio, refúgio, medo, tudo isso são estados de espírito que você aprendeu sem jamais questionar seus valores. Como se pode ver, os adeptos da magia negra já conquistaram toda a sua lealdade.
— Quem são esses da magia negra, Dom Juan?
— Nossos semelhantes são os da magia negra. E já que você está com eles, você também é da magia negra. Pense um momento. Você pode desviar-se do caminho que eles lhe traçaram? Não. Seus pensamentos e atos estão fixos para sempre nos termos deles. Isso é escravidão. Eu, por outro lado, lhe trouxe a liberdade. A liberdade é dispendiosa, mas o preço não é impossível. Assim, tema seus captores, seus mestres. Não perca seu tempo e seu poder tendo medo de mim. Eu sabia que ele tinha razão e, no entanto, a despeito de concordar sinceramente com ele, eu também sabia que meus hábitos de toda a vida me fariam aderir a meu melhor rumo. Eu me sentia realmente escravo.
...
— Eis o defeito das palavras — disse ele, num tom tranquilizador. — Sempre nos obrigam a sentir-nos esclarecidos, mas, quando nos viramos para enfrentar o mundo, elas sempre nos falham e terminamos enfrentando o mundo como sempre o fizemos, sem esclarecimento. Por este motivo, o feiticeiro procura agir em vez de falar e para isso ele consegue uma nova descrição do mundo: uma nova descrição em que falar não é assim tão importante, e em que novos atos têm novos reflexos." (Carlos Castaneda - Porta Para o Infinito)
"The end is the beginning"