quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Bi

Quarta-Feira, primeiro de janeiro de dois mil e vinte.

Meia-noite

Se tem uma habilidade que eu domino é a de fazer ninho aqui e ali e cultivar famílias, embora da minha própria eu seja um pouco distante. A ultima viagem de família que fui num fim de ano acabou que eu viajei em grupo e "turistei" nas ruas do Rio na calada da noite enquanto eles dormiam, sambei na Pedra do Sal, conheci os trilhos das Central do Brasil, subi a Providência de bondinho, transei atrás do palco da virada em Copacabana e no fim vi o show do Jorge Ben sozinha na areia. Ano passado eu não viajei, almocei no "chefe" com os parceiros da correria e passei a noite com amigos mais íntimos, lembro de estar particularmente feliz, tranquila e em uma boa fase, com grana, saúde psicológica e pessoas queridas ao redor. No primeiro dia do ano passado as crianças me buscaram em casa pro churrasco na casa da Bi. Veja bem, eu tô aqui, enchendo essa linguiça toda de bláblá pra contar o que tem de diferente entre o ano novo no ano passado e neste. Eu to com esse "churrasco na casa da Bi" engasgado tem cerca de um mês. 
Gente sozinha cria a habilidade de se familiarizar com outras pessoas sozinhas.
Embora eu goste da minha solitude este fim de ano eu tive crises de ansiedade e pânico fortíssimas no últimos dias e vi meus amigos se evitando pra não chorar na frente um dos outros. A questão é que "Bi" somos todos nós e eu com toda a minha frieza sempre afirmei que nunca tinha ido a velório de "bicha" e ninguém ali ia ser a primeira, mas ele foi. 
Esse textão imenso vai ficar um lixo, eu sei, to dando muitas voltas no assunto mas aqui não importa a estética. 
Vamos do início. 
Vinte e cinco pinos de cocaína e uma corda no pescoço. 
Vinte e cinco pinos de cocaína, uma corda no pescoço de um cadáver sentado no chão do banheiro, um vídeo, uma carta, muitas mensagens e ligações. 
Depressão, ansiedade, suicídio por overdose e omissão de socorro. 
Eu tô engasgada por que ontem eu sai de casa toda montada no pretinho básico fendado, radiante, contei meia-noite com o ex parceiro de trabalho, o filho dele e nosso cliente mais fiel e solitário, depois vi meus amigos cantando, dançando e volta e meia alguém lembrava que faltava um e sumia. Chorei sozinha escondida com a garrafa e o cigarro, lembrando dos momentos que passei quando começamos a nos tornar próximos, eu e a Bi, através da tia dele quando moravam juntos, minha melhor amiga. Era uma relação de amor e ódio que hoje entendo que o ódio vinha do vício, eu tinha o que ele queria mas respeitava a opção dele de resistir. Nem todos são assim, a maioria se move à dinheiro, mesmo que eu não me reconheça dentro das minhas atitudes as vezes, sempre tive consciência. 
É a segunda vez que eu encaro a morte por overdose. Na primeira eu vi sumir a vida do fundo dos olhos verde-água mais lindos que eu conheço, da pessoa que eu amava. Segurei ele se debatendo e vomitando, sufocando. Dormi sentada, agarrada a ele na maca e vi a vida voltando. 
Bi pediu socorro quando começou a sufocar, ligou pra um amigo que não compareceu. 
Eu já apanhei da polícia na cara e fui chamada de fria e incapaz de chorar, hoje eu choro em qualquer lugar e pra ser muito sincera o comércio de cocaína não faz mais parte da minha rotina já tem uns seis meses. Tenho sorte de nunca ter me perdido, nem usado. Hoje eu acordei jurando que nunca mais encosto num pino. 
Esse ano não teve churrasco na casa da Bi, um a menos no rolê, não vai ter parceria forte no tamborim do carnaval, nem dançarino de forrózinho de bar e toda vez que ouvir "Gosta de buteco e de cerveja de garrafa" naquela parte que o cantor deixa o coro pra platéia, eu vou lembrar de você cantando com o maior carinho do mundo.


Texto dedicado ao E., pessoa doce, forte e amável que encontrou a paz em meio ao caos.