quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Entrevista com Angelo Arede do Gangrena Gasosa


Foto: Karen Navega

Gangrena Gasosa é o símbolo máximo do desconforto e da crítica no cenário musical atual do Brasil e do mundo, uma verdadeira porrada na mente de quem os ouve com direito a crítica e cura de boiolagem. Riffs alucinados, pancadaria extrema, grunhidos, fumaça, tambores e ebós, defando a sinfonia do cramulhão. Temos a honra de entrevistar o Seu Zé, Angelo Arede.

Foto: Eduardo Luderer

ZR - Além de um massacre sonoro, pra você, Angelo, o que o Gangrena representa?

Angelo - Vou contar o que a Gangrena representa individualmente e o que acho que ela representa coletivamente. Pra mim a Gangrena Gasosa representa o veículo onde faço tudo que acho que uma banda de Rock pesado brasileira deveria fazer, tudo que eu gostaria de ver como público. Humor, escárnio, terror, identidade brasileira, agressão verbal e sonora. Coletivamente penso que representamos um enorme ponto de interrogação pros puristas, pros desprovidos de humor, enfim pros que se denominam ‘trues’ do metal (sic). Apesar dessa parcela de ouvintes ser uma minoria, infelizmente tem muita representatividade; muitos deles são os que acabaram se tornando os formadores de opinião do meio. Acham que se você ri de si mesmo, se você utiliza elementos brasileiros na sua música, se você não segue o modelo cinturão de bala e corpse paint, você é um cuzão que não deve tocar metal. Tem muito fundamentalista no meio. Agora, o público normalmente quer ver coisa diferente, música diferente, atitude diferente, espetáculo, quer se divertir! É pra esse público que curte som pesado e não é teólogo do metal que fazemos nossa música desgracenta. Felizmente pra nossa galera conseguimos transmitir exatamente o que a Gangrena Gasosa representa pra mim, por exemplo.
ZR - Como você enxerga a trajetória - Welcome to terreiro ‘93 (1993) > Desagradável (2013) -, vinte anos se passaram, muitas coisas devem ter mudado com relação ao gosto musical e também quanto aos próprios integrantes do Gangrena, poderia descrever como se sente diante disto?

Angelo - Me sinto feliz pelas mudanças de integrantes porque hoje conseguimos fechar um time muito coeso, honesto, profissional e principalmente de muita qualidade. Fazia um bom tempo que a banda vinha funcionando cheia de tretas internas, de núcleos conflitantes e isso acaba atrapalhando as coisas. Finalmente a banda voltou a ser um conjunto de malucos que se gostam, que são amigos. Por outro lado fico um pouco nostálgico, pois alguns dos meus melhores amigos eu cultivei na Gangrena. São pessoas que saíram da banda, mas continuam contribuindo demais em conceitos letras e até músicas. Só não lamento a saída deles porque todos encerraram realmente o seu ciclo quando bem entenderam. Cada um sabe de si.
Musicalmente me sinto mais feliz ainda. Antes de entrar pra banda em 94, sempre achei a ideia da macumba subutilizada. Como pode falar de macumba sem tambor? Com o passar do tempo fomos amadurecendo a ideia até que se tornou o que é hoje, com muito mais sentido musical no que a proposta sugere.

ZR - Como o DVD Desagradável foi produzido, quem foi o idealizador, foram utilizados materiais desde o início da carreira da Banda? Como está sendo recebido pelo público?

Angelo - O DVD foi uma co-produção minha, da percussionista Gê (Pomba Gira) e do Fernando Rick, um cara que se tocasse algum instrumento fatalmente tocaria na Gangrena Gasosa. Ele criou a produtora de filmes Blackvomit, que tem muitos clássicos do gore brasileiro na sua conta. Além de ser um dos maiores cineastas do Brasil na minha opinião, tem um senso de humor muito parecido com o nosso, como se fosse integrante da Gangrena há mais de 10 anos. Tivemos também a ajuda de pessoas incrivelmente criativas como Marcelo Appezzato, que estruturou as toneladas de entrevistas e material, o Fabiano Soares diretor da maior parte das entrevistas aqui no Rio e mais um monte de gente que se começar a listar aqui não vai ter espaço suficiente. Todo mundo fez por amor, por acreditar na maluquice que a Gangrena Gasosa representa. É como disse anteriormente, acabamos atingindo uma população que é tão espírito de porco quanto nós.
ZR - Sobre as giras que vocês rodam durante os shows, sempre rola uma gravação especialmente para estes casos ou são músicas já gravadas? As músicas são cantadas por quem?

Angelo - Quando inseridas nas músicas são tocadas, quando são vinhetas nos seus intervalos normalmente são gravadas e postas pra rolar. Isso também vai mudar, já que todos os pontos que utilizamos podem ser tocados de verdade por termos 2 percussionistas na banda agora. Tudo será descendo o braço mesmo.

ZR - E como foi o lance do Cannibal Corpse no Circo Voador? Como os caras encararam a situação e como foi o sentimento de estar quebrando tudo no Circo Voador em meio aos protestos que tomaram conta do país todo? Como enxerga isso, tanto as manifestações quanto terem recebido bombas de efeito moral pelas janelas? Deve ter sido um show e tanto!

Angelo - Eles ficaram apavorados como não poderia deixar de ser. Imagina você tocando num país desconhecido, cheio de más referências de truculência policial, corrupção e crimes onde de repente estoura o que parece ser uma guerra civil? O show deles esteve muito perto de não acontecer. Foi assustador até pra quem é brasileiro, porque você via exatamente pra que a polícia serve no Brasil. Claro que todos sabem a função distorcida que a polícia exerce no Brasil, mas quando você vê centenas de policiais batendo em adolescentes, mulheres, idosos, repórteres e em quem mais aparecesse na frente é inevitável ficar muito assustado. Mas que foi engraçado ver a banda de maior expressão do defão americano trancada no camarim, isso foi. Brioco trancadinho, não passava nem átomo.
Tocar nesse caos foi do caralho, estávamos em casa. Antes do nosso show a banda Forceps ainda teve que parar o show deles umas 3 ou 4 vezes também. Porrada comendo sob os Arcos da Lapa, Circo Voador abrindo as portas pro público que estava na fila não tomar porrada nem bala de borracha, gente chorando, correria, uns mágicos surgindo do nada com várias garrafas de vinagre pra galera passar no rosto e neutralizar o gás pimenta, gente que nem curtia metal na plateia mas entrou no Circo com a multidão pra não apanhar... Detalhe que na hora do nosso show, só o Circo Voador continuava funcionando no meio de uma Lapa sitiada e deserta e a Gangrena lá, firme e forte prolongando os gritos de “Satanás” no final da música “A Supervia deseja a todos uma boa viagem”, xingando a polícia a plenos pulmões com todos eles lá fora espumando de vontade de nos matar e insuflando o público a fazer toda a sorte de atitude caótica dentro e fora do local do show. Foi mágico.

ZR - Como o pessoal de outros países compreendem vocês, eles enxergam toda a magnitude do saravá metal? Conseguem absorver todo o "espírito" da performance da banda? Ou geralmente o que pega mesmo é a sonoridade inusitada para os ouvidos estrangeiros?

Angelo - A música é incrível por isso, era muito engraçado ver a gringalhada agitando, pogando e na hora dos batuques se estrebuchando de forma desconexa. Parecia que estavam recebendo santo, acho que instauramos um terreiro mesmo, provavelmente havia um monte de exus se encostando na galera. Infelizmente, quando tocamos na Europa não estávamos usando as roupas de entidades, acho que isso diminuiu muito a experiência do público. Fui contra essa fase “Lick it up” da banda, mas fui voto vencido. O importante é que público sempre se divertia, sorria, pulava e estrebuchava mesmo não entendendo bulhufas do que estávamos falando. Eles piravam mesmo nas partes percussivas, se impressionavam de verdade. A música é uma linguagem universal, realmente.

ZR - Vocês já estão na correria há um bom tempo, o que você poderia apontar como melhorias e declínios no cenário musical/ (social em que a música acontece), isto é hoje as coisas parecem bem mais acessíveis pra "maioria da galera" (pelo que vemos/ouvimos por aí) e muitas referências dos anos 70/80 estão à solta e ainda andam quebrando tudo por aí, este acumulo cultural, junto dessa porrada de informações da atualidade, o que você enxerga nessa turbilhão? O que isso tem de bom e ruim? Como imagina que as coisas serão daqui algum tempo?

Angelo - Não quero pagar de Nostradamus, mas se alguma coisa realmente contundente não acontecer nos próximos anos a música em geral vai virar uma grande montanha de bosta, onde não vai mais valer a pena enfiar a mão na merda pra achar uma ou outra coisa legal. O melhor da internet é que ela ajuda quem não teria representatividade na época das gravadoras a mostrar sua arte, o pior dela é que junto disso vem muita coisa de pouca qualidade. Obviamente até quem não sabe fazer o que se propõe tem o direito de se expressar, mas isso acaba banalizando o trabalho de quem quer fazer um trabalho de qualidade. E nem adianta a retórica que quem é bom se destaca porque não depende somente disso, quem está envolvido com cultura sabe do que estou falando.
Quanto às referências dos anos 70/80, acho meio triste. Claro que até a música dessa época foi influenciada pelo que foi criado nas décadas anteriores, mas hoje em dia principalmente pela banalização da informação, muita banda não se inspira, simplesmente copia todas as referências na cara de pau, uma após a outra. É o que necessidade cada vez mais urgente de acompanhar a velocidade das informações acaba fazendo. A maioria não parece se importar com o Municipal Waste ser a versão recente do Nuclear Assault e com todas as bandas de stoner serem basicamente um cover do Black Sabbath e mais algumas da época. Se eles fizessem algo novo, provavelmente não seriam tão conhecidos. E olha que eu até curto essas bandas atuais, mas acho triste ser como é. Essa onda de revival é inimiga do novo.
ZR - Além de vocalista/terrorfrontman do Gangrena, você também é o responsável pelas ilustrações do Gangrena, você tem algum outro vínculo com arte? Participa/participou de projetos paralelos envolvendo seus trampos, HQ's, Zines? Quem são os ilustradores que você curte?

Angelo - Meu envolvimento com arte sempre veio de contracultura, do bizarro. Até hoje tenho alguns problemas em conseguir trabalhos de ilustração, pois meus desenhos normalmente têm alguma coisa relacionada com terror, demônios, etc. Só nego maluco como eu que compra o barulho, o que é cada vez mais difícil no mundo comercial. Trabalhei uma época nas animações do Allan Sieber (que ilustrou o encarte do 2º CD da banda), mas fora isso, nada de muita representatividade artística, que eu me lembre. Você acaba tendo que trabalhar com material corporativo, coisa que eu detesto, mas que paga minhas contas. Também não me sobra muito tempo pra ter que fazer trampos que paguem minhas contas, levar a Gangrena e ainda ter satisfação com trabalhos artísticos com os quais eu me identifique. Meu portfolio resumido está em be.net/angeloarede .

ZR - As entidades de umbanda/quimbanda são referenciais de pessoas que viveram há algum tempo e geralmente em condições 'não tão felizes', como no caso de prostitutas, malandros, meninos de rua, pessoas que estiveram à margem da sociedade burguesa/branca/católica/espírita; Talvez por isso menosprezados por alguns e louvados por outros que compreendam este lado mais denso dos fatos e busquem neles inspiração para transcender suas dificuldades, o Gangrena Também tem um vínculo com esse povo, com os degenerados/excluídos do "panteão cultural" normatizador das coisas?
Angelo - Posso falar por mim. Acho sensacional o espiritismo africano. Os orixás representam forças da natureza, me parece mais coerente do que a visão polarizada de bem versus mal amplamente difundida pelas religiões que demandam controle total sobre seus seguidores.
Os Exus na maioria das vezes são esses excluídos em vida que pra alcançar a iluminação espiritual após a morte fazem essa ponte entre vivos e Orixás. Quem faz o mal através deles é que são demônios, os Exus cumprem seu carma servindo aos humanos.
Quanto à inspiração, acho que ela acontece mais com o que eles eram em vida do que depois. Quem sabe não acabemos nos tornado Exus do outro lado.

ZR - Que sons você acha que te influenciem e também o que você acha que está rolando de novo e legal por aí na indústria fonográfica?

Angelo - Tem coisa nova legal rolando no Death Metal exatamente por mesclar elementos que antes os ‘trues’ não admitiriam, mas no que tenho tido acesso, para por aí. Tenho ouvido muitos clássicos de música folclórica e regional brasileira, que toma a maior parte do meu tempo curtindo música. Já a indústria fonográfica normalmente joga merda nos meus ouvidos, tento evitar isso buscando coisas novas no turbilhão de informação da internet, mas está difícil.

Confiram mais sobre a brilhante trajetória do Gangrena em:

www.gangrenagasosa.com.br

E deem uma olhada nas ilustras geniais do Angelo em:
be.net/angeloarede