O livro “O estrangeiro” (L´ÉTRANGER),
foi publicado no ano de 1942 e é considerado por muitos a grande obra
de Albert Camus. Tal romance foi o grande responsável pelo prêmio Nobel
que o escritor ganhou no ano de 1957.
Esta obra-prima
da literatura contemporânea causou um grande impacto na sociedade ao ser
publicada, pois está implícita em seu conteúdo uma visão de cunho
existencialista, até porque tal doutrina estava em voga na Europa,
principalmente no período pós-guerra. Tal foi à repercussão da obra, que
o filósofo e teatrólogo Jean-Paul Sartre a conceituou como uma
ilustração da existência humana e que seria interessante conhecer o
autor. Esta declaração fez com Camus e Sartre iniciassem uma bela
amizade que duraria dez anos, até eles brigarem por questões políticas.
O estrangeiro é
uma narração em primeira pessoa do personagem Meursault, um homem que
narra friamente sua vida, diante da realidade absurda que é a
existência. A história é dividida em dois momentos, porém ao longo do
livro o personagem mantém uma posição indiferente e que remonta ao um
niilismo e a certa despreocupação com a vida.
A
primeira parte da História é caracterizada pela a morte da mãe do
personagem principal, que ao relatar o enterro e os personagens da
cerimônia, age de forma imperturbável e indiferente, não mostrando
nenhum sentimento para com os outros, tais ações relembram as posturas
de ataraxia e deapatia, tão comum nas correntes Helênicas do Estoicismo e do Ceticismo.
“Hoje, minha mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: "Sua mãe falecida: Enterro amanhã. Sentidos pêsames".Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo, a oitenta quilômetros de Argel. Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu chefe e, com um pretexto destes, ele não me podia recusar. Mas não estava com um ar lá muito satisfeito.Cheguei mesmo a dizer-lhe "A culpa não é minha". (CAMUS, A. 2000. p. 01)
Podemos notar no
trecho acima uma profunda indiferença do personagem em relação ao
falecimento de sua mãe, tal opinião ainda choca muitas pessoas. O
niilismo de Meursault corresponde a todo um movimento que ganhava força
na Europa: o Existencialismo, principalmente aquele defendido por
Sartre. Onde a existência é dotada de absurdo e nada possui um sentido
prévio.
Ao longo desta
primeira parte do livro, o personagem não emite opiniões e nem paixões,
simplesmente adota uma atitude de indiferença, não só com o enterro de
sua mãe, mas com sua “namorada” Maria, seu vizinho Raimundo e até mesmo
com o assassinato de um árabe, cujo Meursault o matou com cinco tiros
após a uma briga.
A segunda parte
do livro é baseada no testemunho de Meursault durante sua estadia na
prisão e sua visão sobre o julgamento em relação a seu assassinato. Em
tal parte do livro, o personagem chega a apresentar alguns traços
sentimentais e nostálgicos em relação à Maria e a sua liberdade, porém
com o tempo nosso protagonista compreende a falta de sentido e até mesmo
de necessidade que é ficar sem prendendo a tais sentimentos e perdendo
tempo com isso.
Um
fato interessante é que em seu próprio julgamento, Meursault se
incomoda tanto com a defesa quanto com a promotoria, pois estes
distorcem todo o foco do julgamento e tentam padronizar um sentido para
suas ações:
“Quanto a mim, sentia-me atordoado pelo calor e pelo espanto. O presidente tossiu um pouco e, em voz não muito alta, perguntou-me se eu queria acrescentar alguma coisa. Levantei-me e, como tinha vontade de falar, disse, aliás um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o Árabe. O presidente respondeu que era uma afirmação, que até aqui não percebia lá muito bem o meu sistema de defesa e que gostaria, antes de ouvir o meu advogado, que eu especificasse os motivos que inspiraram o meu ato. Redargüi rapidamente, misturando um pouco as palavras e consciente do ridículo, que fora por causa do sol. Houve risos na sala. O meu advogado encolheu os ombros e, logo a seguir, deram-Lhe a palavra. Mas ele declarou que era tarde, que precisava de muito tempo e que pedia o adiamento até logo à tarde. O tribunal concordou.” (CAMUS, A. 2000. p. 71)
Podemos
notar claramente que o personagem não vê nenhuma necessidade de mentir
ou de fazer uma nova interpretação de seus atos, ele simplesmente fala o
que ele pensa indiferentemente daquilo que possa acontecer com ele. Tal
atitude para grande maioria das pessoas é no mínimo inusitada, pois o
normal em uma ocasião destas seria que a pessoa ao menos tentasse se
livrar da culpa ou amenizar sua situação. O que não acontece Meursault.
Outro
ponto muito significativo do livro consiste no dialogo conflituoso
entre Meursault e uma padre. O sacerdote com o intuito de “ajudar”
espiritualmente o prisioneiro que estava condenado à morte, tenta pregar
princípios e postulados religiosos para o condenado e este reage com
fúria. Pode-se notar o incômodo do protagonista com os dogmas religiosos
que sustentam a fé da maioria e os desviam do absurdo e da falta de
sentido apriorístico da vida. As idéias de vida póstuma e de Deus
são vida com desdém e desconfiança pelo personagem, que mostra
claramente que aquilo para ele não tem sentido algum e não pode
ajudá-lo. O padre como transmissor de um dogma, tenta evangelizar o
condenado, porém este se irrita e o ataca violentamente:
" ‘Não, meu filho, disse ele pondo-me a mão no ombro. Estou ao seu lado, mas não o pode saber, porque o seu coração está cego. Rezarei por si’ – disse o padre. Então, não sei porquê, qualquer coisa rebentou dentro de mim. Pus-me a gritar em altos berros e insultei-o e disse-Lhe para não rezar e que, mesmo que houvesse um Inferno não me importava, pois era melhor ser queimado no fogo do que desaparecer. Agarrara-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele todo o fundo do meu coração com impulsos de alegria e de cólera. Tinha um ar tão confiante, não tinha? Mas nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. Nem sequer tinha a certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. Eu, parecia ter as mãos vazias. Mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. Sim, não sabia mais nada do que isto[...](CAMUS, A. 2000. p. 83).
Nota-se claramente a indignação de Meursault,
com a imposição de verdades e de sentidos postulados por outro. Tal
idéia é muito freqüente no período contemporâneo onde o homem viu que
certeza que duraram séculos foram derrubadas, o que acarreta
simplesmente em uma atitude cética perante a realidade e a imposição
ideológica.
No final do
livro, enfatiza-se a idéia de indiferença perante a vida, na qual tudo é
tão desprovido de sentido. Meursault termina dizendo que o único desejo
dele é que seu enterro seja composto por uma multidão que o odeie por
ser simplesmente indiferente e ter uma outra perspectiva da realidade.
A
leitura deste livro faz indagar a importância da subjetividade no
decorrer de nossas vidas, até porque o livro narrado em primeira pessoa e
apresenta uma visão de mundo que é caracterizada principalmente pelo
absurdo que é existir. Meursault
não é necessariamente um vilão e sim uma pessoa que não se guia por
ideais (nas palavras de Nietzsche ele é um niilista passivo) e que
demonstra indiferença e descrença nos valores predominantes da
sociedade. Esse é um dos motivos que fez com que O Estrangeiro se
tornasse um clássico, pois este reflete uma sociedade que começa a ver o
mundo de uma forma diferente do que até então era presenciado.