Na Contramão

"Quando a insônia, qual lívido vampiro,

Como o arcanjo da guarda do Sepulcro,

Vela à noite por nós,             

E banha-se em suor o travesseiro, 

E além geme nas franças do pinheiro

Da brisa a longa voz..."         

(Castro Alves)

      O que vem a ser liberdade senão a ausência total de poderes e poderosos?

   Não existe nível de independência absoluto quando se submete ao ciclo vicioso do consumo, tampouco quando escolhemos um Estado obrigatoriamente com letra maiúscula. Uma das definições da palavra Governo no dicionário é tendência ou capacidade de ter o poder sobre, desta forma, impera tanto quanto Dom Pedro II qualquer governador ou presidente da "república" com letra minúscula (visto que aqui não tem nada de pública, que caiam também as regras da gramática). Mas chega! Me entedia por demais o tal "papo cabeça politizado". Voltemos à liberdade antes que eu enfie a cara em um Dostoiévski qualquer ou talvez um Drummond e esqueça de terminar esse texto na tentativa de fugir das minhas ideias entediantes, como quando fujo daquele outro ciclo vicioso chato: o falatório coletivo que não evolui pra ação. 

   A religião, por exemplo, é uma arma que só funciona nas mãos de quem doutrina, e dito isso alguém vai se indignar e afirmar que é livre para se adequar ou não à um sistema de crença. Verdade, mas nem tanto: um seguidor fiel não deve desrespeitar as leis, que são impostas sem qualquer consulta prévia ao interessado e comumente perduram por séculos pois não se deve contestar ordens divinas sejam elas coerentes ou não; isso inclui não "se desviar" da visão de mundo mais viável à quem dita as regras. Se temos a necessidade de crer em algo, por quê não em nós mesmos e na nossa capacidade de assumir o controle das situações nas quais estamos inseridos diariamente? Por que isso implicaria também em ter de assumir responsabilidades sobre nossos atos e, nesse caso, deus me livre do erro, da má vontade, da incapacidade, da culpa... Não bebo, não fumo e não fodo por que assim deus me livra da luxúria; deus livrou o paciente da morte assim que os médicos retiraram o câncer; criança come lixo e madame nada em diamante quando deus acha que merecem. Simples, fácil, deus resolve todas as questões sem nem precisar pensar. 

   Agora eu quero falar de amor, admitindo que sou uma romântica incontrolável e chata, capaz de me apaixonar incontáveis vezes por dia. Aí quando aquela vizinha que passa a vida debruçada na janela falando mal dos outros um dia me para e diz que não tenho vergonha na cara e não sei o que quero, respondo que tem amor pra todo mundo, sim. Tem amor pra quem eu quiser amar, de graça, a hora que eu quiser e ninguém tem nada a ver com isso, ninguém é dono disso além de mim. Acredito que o problema não está no romantismo em si, mas em idealiza-lo e querer o outro como você é ou da maneira que te agrada; está na censura do comportamento, vontades e roupas alheias bem como no desrespeito, autoritarismo e cárcere privado. O Tesão é algo biologicamente natural e você não vai pro inferno nem torna-se menos digno quando seu corpo entra em contradição com o que é comum e bem aceito socialmente. 

  Mais de dez anos na escola e só aprendemos a reproduzir ideias e vender nosso tempo de vida, pensar não por que é perigoso e ser livre não é uma possibilidade quando a sociedade é uma ilha envolta em estereótipos; é preciso quebrar a tela da televisão quando temos padrões, rótulos e "modelitos novela das oito" até o pescoço. Que me perdoem e não me julguem mal as boas almas amigas da camada de ozônio, mas é necessário queimar todos os símbolos conflitantes com o nosso livre arbítrio e importante deixar registrado nas paredes do mundo que a minoria não manda, a miséria é rentável, é imprescindível o desemprego de muitos pro acúmulo de bens de alguns e gente dormindo nas calçadas de prédios vazios é bastante absurdo.

  Se queres ser realmente livre deve-se derrubar os novos reis, destruir seus tronos e desmascarar os súditos. Temos que explodir o capital.

O Que Fazer Em Caso de Incêndio? (2001)

Drama cômico alemão dirigido por Gregor Schnitzler.

Dedico o texto ao Guto, professor de história no ensino público.