"Ainda me lembro aos três anos de idade
O meu primeiro contato com as grades
O meu primeiro dia na escola
Como eu senti vontade de ir embora"
(Legião Urbana)
(Legião Urbana)
Ele também estava lá; uma coleguinha fazia piada dizendo que ele era branquelo, que era um "barata branca" e entre as crianças da nossa idade era o mais quieto. Como eu já falava muito e com todo mundo, me aproximei e ele me falou da mãe, Sônia, que trabalhava em um consultório de dentista. Em uma tarde tive a oportunidade de conhecer a Sônia. Já faz tanto tempo que me fogem os detalhes da memória, mas lembro que eu estava com a minha mãe em uma dessas filas que a gente se acostuma a enfrentar e vai fazendo amigos enquanto espera quando ela se aproximou e disse em um tom cômico de segredo: "Meu filho gosta de você". Algum tempo depois eles se mudaram, acho.
Pra minha surpresa, nos reencontramos na 8a série, ele não era mais nem de longe aquele menino tímido e quieto. Deixou o cabelo crescer e tinha um olhar de revolta, foi expulso de uma escola e na transferência acabou em uma daquelas salas montadas com alunos escolhidos a dedo. Todas as "frutas podres" iam parar na mesma sala para não atrapalhar o desempenho dos demais, dizia a direção. Eu também estava lá, ele se aproximou e conversamos sobre ideais em comum.
A gente sempre fugia em bando da escola. Alguns amigos que fugiam junto iam pra casa de um conhecido mais velho se drogar, mas a gente só queria desafiar a direção saindo pelo portão principal pra dar uma volta na praça. Um dia ele quis desviar o caminho pra não passar em frente ao consultório onde a mãe ainda trabalhava: "Não quero que nos veja juntos, ela diz que você é uma má influência", se justificou. E nós morremos de rir daquela verdade. Naquele ano tivemos vários episódios engraçados com a dona Sônia, incluindo um em que ela foi brigar com o filho na sala de aula e saiu humilhada por ele, que se dizia cansado de várias situações de pressão. Não demorou muito pra ele ser transferido novamente por mau comportamento.
Eu me mudei e perdemos o contato outra vez. Um namorado me disse que o encontrou no ponto de ônibus e ele perguntou por mim. Disse isso em tom de repressão, nem quis imaginar o tipo de resposta que ele deve ter dado à pergunta e tentei explicar que eramos só amigos, mas não adiantou. Quando voltei, nos encontramos uma vez no curso de inglês e em um bar com amigos em comum. "A rotina já estava tomando tudo e não havia mais tempo para conversar", pensei.
Eu estava diferente, resolvi estudar teatro e me mudei novamente. Ele ia me encontrar esporadicamente quando eu visitava minha mãe. Era sempre calmo e quieto e extremamente educado, não tinha mais o olhar de revolta. Questionei a mudança e ele contou que na época de escola apanhou de um grupo e passou a viver na defensiva. Se revoltou pra não ser mais atacado mas a máscara já não era mais necessária. Desviava o assunto quando eu perguntava se estava bem, contou sobre uma garota que ele gostava mas não deu certo, falava em ciências exatas e economia de maneira quase poética, mas se julgava pouco inteligente. Falava pouco e com olhar de muita dor sobre o relacionamento dos pais.
Uma vez ele foi até a república onde eu morava e ia acontecer uma festa. Notei que tinha marcas nos pulsos, mas ele não quis me explicar o que havia acontecido. A festa começou ele me disse que se sentia mal entre muitas pessoas e sem que eu pudesse impedir, foi embora. Hoje, muitos anos depois do meu primeiro contato com as grades e com um grande amigo, vi a imagem dele atrás de outras grades, com uma tarja preta no lugar do olhar. Estampava um site de notícias cheio de erros de português enfatizando que ele tem distúrbio psiquiátrico. Não dizia nada sobre a causa do distúrbio nem sobre os motivos que o levaram a beijar com ironia um cartucho de revólver calibre 22 sugerindo um acerto sanguinário de contas ao próprio pai.
"A indiferença que não te deixa pôr a mão no bolso
É a mesma do louco que corta seu rosto.
Eterna vítima de joelhos, refém do medo
Sua pomba branca tem dois tiros no peito."
(Facção Central)
Dedico o texto ao JHV, que a paz o encontre um dia.